É mais que futebol.
A falta do futebol amador por conta da pandemia do Covid-19.
Dia 22 de março de 2020, Salvador/Ba, a terra da alegria, amanheceu mais triste, não pela perda de um ente querido seu, mas foi como se o fosse, foi um domingo sem futebol. Não exatamente o futebol profissional, dos contratos milionários, dos estádios luxuosos e de ingressos e pacotes de tv caros, que estão cada vez mais distantes de nossa realidade, mas do futebol amador, o futebol de bairro ou simplesmente de várzea. Falo daquele que está nos diversos longínquos grilhões da nossa periferia e ao mesmo tempo tão perto, tão raiz, tão identidade, é tão nossa vida que chega a confundir-se com nós mesmos.
Essa doeu na alma, foi cruel ouvir o silêncio ensurdecedor que ecoava pelos campos de terrão vazios, enquanto a amante mais ardil e singela, mais astuta e desejada, mais cavilosa e cortejada entre todas, aquela que nos acompanha e nos embriaga desde a mais terna infância, a bola, foi relegada ao abandono do nosso lar. Mais que um paradoxo, como diziam Mamonas Assassinas, foi um pretérito imperfeito complexo com a Teoria da Relatividade, que nem o próprio Albert Einstein conseguiria desvendar, nem a psicologia de Sigmund Freud se aplicada por 10 (dez) anos de terapia, iria nos curar.
Esse nefasto vazio ainda há de propagar-se de forma rocambolesca e impiedosa por dias a fio, já que no próximo domingo também não haverá jogos, e a verdade inconveniente, que insiste em nos trazer de volta à realidade, é que não se sabe exatamente quando voltáramos a ecoar o grito de gol, que ficou preso na garganta a miúde, pelas justas, adequadas e pertinentes políticas públicas de saúde que impelem distanciamento social, isolamento e quarentena, com fins de evitar a propagação da pandemia COVID-19 (Corona vírus), aqui nas terras do branco mulato e do preto doutor, como nossa terrinha fora imortalizada na letra de Caymmi.
Resta-nos pois, para não morrer de banzo, de raiva ou de tédio, assistir novamente aos jogos que foram gravados outrora pelo Nagalera, rever fotos antigas e não pode faltar o velho e bom debate no grupo do Nagalera, nas seleções dos melhores jogadores de todos os tempos, na indicação dos melhores times do momento, das fofocas que vazam dos bastidores ou de qualquer outra assunto que garanta uma boa dose de divergência, polêmica, adrenalina, ódio e paixão.
Mas por que um jogo, aparentemente simplório, no qual 11 (onze) jogadores de cada time tentam colocar uma bola dentro de uma meta, e assim fazer o tão sonhado gol, mexe com tantos sentimentos?! Não parece ter muito sentido e ser muito interessante quando explicado desta forma, não é?! E mesmo se para agradar aos intelectos eu dissesse que é um jogo onde se remete às lutas épicas, nos quais gladiadores uniformizados e impulsionados por gritos de guerra de fiéis seguidores apaixonados, defendem sua honra plastificada nas suas bandeiras, lutando com derramamento de suor e sangue, ainda assim não seria grande coisa!
Será que o futebol no fundo é só uma desculpa? Pois quando me lembro do futebol, especialmente na várzea aos domingos, não lembro só do jogo, lembro que vi e confraternizei com amigos, vizinhos e familiares, que provoquei, que fui xingado, que ri e chorei, que ganhei e perdi, que comi feijoada e tomei a cerveja gelada resenhando no pós jogo no barzinho da esquina de “seu Zé”, porque todo bairro tem o bar do Zé, com licença poética ao Trio Nordestino, é Zé de baixo, Zé de riba, tesconjuro como tem Zé em nossa várzea Paraíba.
A várzea juridicamente é o exercício prático do direito fundamental ao lazer previsto no artigo sexto da Constituição, para muitas famílias no final de semana, muitas vezes o único. Para sociologia, é uma forma de estar em grupo exercendo o nosso papel social de ser iminentemente coletivo. Para filosofia, é um meio para sentir útil e existente no mundo. Para a economia é um negócio que aquece o mercado formal e informal na cidade e nos bairros, desde a venda de uniformes e outros materiais esportivos, bebidas, energéticos, medicamentos, passando pelos pagamentos de serviços próprios para o espetáculo até o simples e saboroso churrasquinho na beira do campo.
A várzea nasce e sobrevive no amor que nos move e nos impulsiona a realizar nossos sonhos de ser jogador, arbitro ou dirigente, que nos faz querer, teimar e sofrer para ser feliz, nem que seja naquele micro segundo quando a bola cruza linha, e o apitador aponta para o meio de campo, ali vem a explosão e ao mesmo tempo uma dose de anestesia que acalenta todos os nossos sofrimentos e nos faz, naquele instante, esquecer da nossa finitude e eufemisticamente oculta as nossas mais variadas mazelas, é por isso e outras coisas, que eu digo: é mais que futebol.
MARCELO PINTO DA SILVA possui formação em Direito pela UFBA. É MBA em Gestão de Negócios pela Faculdade Católica de Ciências Econômicas da Bahia e Mestre em Direito Privado e Econômico pela UFBA. Atualmente é Professor da UNEB onde é Diretor do Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos e desenvolve e promove pesquisas Linha de Pesquisa Direito, Cidadania e Relações Interétnicas. É advogado e atua na área de Contratos em geral e indenizações. Atual Presidente do Real Sussuarana Futebol Clube e amante do Futebol Amador.